Eles odeiam o Brasil
"Eu tenho quinze anos / E sou morena e linda! / Mas amo e não me amam / E tenho amor ainda. / E por tão triste amar, / Aqui venho chorar." (Joaquim Manuel de Macedo, A Moreninha)
"Iracema parou em face do jovem guerreiro: [...]
- Uma noiva te espera?
O forasteiro desviou os olhos. Iracema dobrou a cabeça sobre a espádua, como a tenra palma da carnaúba, quando a chuva peneira na várzea.
- Ela não é mais doce do que Iracema, a virgem dos lábios de mel, nem mais formosa! - murmurou o estrangeiro." (José de Alencar, Iracema)
A História da humanidade, da formação de povos, sociedades, civilizações, não é - jamais foi - algo linear. Guerras, conquistas, mortes, apropriações, aculturamentos, domínios, sujeições, desastres; uniões amizades, amores, acordos, tratados, reconstruções, reconhecimentos... Os eventos são inúmeros e não podem ser vistos de forma linear ou mesmo anacrônica. Desde os tempos imemoriais, nos quais os deuses guerreavam pelos homens, até o alvorecer da modernidade e do estabelecimento definitivo (ou quase) das nações, a História (com "H" maiúsculo) tem sido uma sucessão de contradições, de altos e baixos, de eventos gloriosos e catastróficos.
Mas nada disso é levado em consideração quando se quer recontar a história de modo que esta se encaixe numa narrativa ideológica. O anacronismo, as simplificações, os desvios e reinterpretações enviesadas são levados a extremos inacreditáveis, a fim de sustentarem rupturas institucionais que justifiquem alterações profundas da ordem social e até processos revolucionários.
O jogo sujo é manjado, e podemos buscar sua gênese em duas ou três ideias centrais. A primeira, arrisco dizer, está em Rousseau e seu delírio sobre a desigualdade. Ao dizer, em seu Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, que "o primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil"; e, n'O contrato social, que "o homem nasce livre, e por toda parte encontra-se acorrentado" - dominado por poderosos que, tendo se apropriado dos recursos, subjugaram os demais -, forneceu subsídios a um tipo de imaginário idílico sobre o homem primitivo, como se este fosse um bom selvagem vivendo uma vida sem disputas, e que a sociedade civil organizada fosse a raiz de todos os males.
Karl Marx se apropriou desse "acorrentado" rousseauniano e o chamou "proletário", criando toda a sua teoria sobre a luta de classes e o comunismo como a realização de uma espécie de paraíso na Terra. E, ao afirmar, à maneira de Rousseau - ou seja, de modo fantasiosamente generalizante -, que "a história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes", justificou sua teoria de apropriação da propriedade alheia por meio da força e da eliminação. Mais recentemente, diante da inadequação contemporânea e pós-industrial das categorias "burguês" e "proletário", criou-se a ideia de opressor e oprimido. E duas ou três gerações de intelectuais, jornalistas, professores, escritores, artistas e formadores de opinião de toda sorte, doutrinados nas universidades por essa mentalidade, fizeram o serviço de transformar esse reducionismo apocalíptico em regra.
Nada escapa dessa interpretação sumária da História, e tudo o que ocorreu, dos primórdios até agora, só pode ter sido um arranjo dos opressores a fim de perpetuar a sujeição dos oprimidos. Todos os processos civilizacionais, todo o estabelecimento de sociedades organizadas, tudo, absolutamente tudo, é visto sob a ótica de projetos de poder; projetos que, obviamente, não são inclusivos e não contemplam a diversidade, mas são um construto exclusivo para a fruição do homem branco. Pareço exagerar, caro leitor? Penso que não.
A mais recente cartada desses maníacos, e que me trouxe a este artigo, foi contra a formação do povo brasileiro. Seu ódio à miscigenação, tão nocivo quanto o dos racistas e eugenistas do séc. XIX (se bem que alguns ainda estão por aí), deu mais um fruto. Uma pesquisa genética ampla e inédita, realizada por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), descobriu que quase todos os brasileiros são miscigenados. Foi utilizada uma amostra de 2.723 pessoas de todas as regiões do Brasil - do Amazonas ao Rio Grande do Sul -, e o que se descobriu foram 8,7 milhões de variações genéticas que nunca haviam sido catalogadas, e algumas características que deram margem à sanha militante dos pesquisadores.
Segundo reportagem da Folha de S.Paulo, "a assimetria entre os sexos, considerando as diferentes origens de cada população, também é marcante. A predominância europeia é ainda mais clara quando se usa o cromossomo Y, a marca genética da masculinidade, para estimar quais as linhagens paternas dos brasileiros (mais de 70% derivam da Europa), enquanto as linhagens maternas são majoritariamente africanas (42%) e indígenas (35%). Só 2% dos homens brasileiros de hoje têm um ancestral masculino que pertencia aos povos originários. Em suma, homens de origem europeia tinham chances muito maiores de conseguir parceiras de outras origens étnicas e gerar filhos com elas." Daí que, conclui a geneticista Tábita Hünemeier, uma das coordenadoras da pesquisa: "Muito difícil explicar esse padrão sem os efeitos da violência sexual durante a colonização".
A ignorância histórica e antropológica de Hünemeier é até compreensível; esua verve militante também, basta ver a bandeirinha de arco-íris em seu perfil do "X". Mas ela foi reverberada pela indefectível antropóloga Lilia Schwarcz - já criticada por mim em artigo desta Gazeta do Povo. Lilia Katri Moritz Schwarcz, de família judia europeia, é figura carimbada quando o assunto é racismo no Brasil, uma vez que é não só uma notória antropóloga uspiana, com vários livros publicados sobre o assunto, mas também sócia de seu marido, Luiz Schwarcz, na maior editora do Brasil, a Companhia das Letras. Mas há mais: Lilia Schwarcz fez de si mesma um nobre espécime da elite progressista brasileira, uma vez que diz colocar seu privilégio em favor dos desprivilegiados do país.
De acordo com uma entrevista para a revista on-line Gama, ela afirma: "Eu falo do lugar da branquitude, do lugar de conforto. É um lugar de privilégio, que procura naturalizar a raça. Nós falamos da raça dos outros como se nós mesmos não tivéssemos raça, mas nós temos. A minha família aprendeu duramente que nós tínhamos." Aí, em vez de falar de sua "raça", dos judeus brancos da Alsácia-Lorena, na França, ela resolveu falar dos negros e do racismo. Eu, como negro, deveria agradecê-la, não fosse ela, por sua notoriedade, uma das principais causadoras das tensões étnicas existentes no Brasil atual.
Reverberando a pesquisa de sua alma mater, e a afirmação militante de Tábita Hünemeier, Schwarcz compartilhou uma imagem, numa de suas redes sociais, com a seguinte frase: "IBGE mostra como quase toda a população brasileira é miscigenada. Mas o padrão são homens europeus e mulheres africanas e indígenas. Somos mesmo descendentes de estupro!" E escreveu um texto repetindo os dados da pesquisa e reafirmando o que está na imagem.
A primeira coisa que salta aos olhos no post de Schwarcz é sua desfaçatez. Ela diz "somos" como se fosse uma fiel representante da mestiçagem brasileira. Mas não, ela é uma mulher branca de ascendência europeia não miscigenada - pelo menos não no Brasil. Segundo que, como antropóloga que é, ignorar os variadíssimos processos de miscigenação ocorridos no Brasil, amplamente verificados historicamente, é mentir para lacrar.
Como disse o sempre brilhante Antônio Risério - antropólogo que não fecha os olhos à realidade e, por isso, foi censurado e ostracizado pelo mainstream acadêmico e cultural brasileiro - numa série de textos sobre o assunto em seu Substack:
"Nossa primeira onda miscigenadora não contou com negros. Foi exclusivamente euro-ameríndia. E sem qualquer interferência estatal. É o 'período caramuru' da vida brasileira, quando os brancos eram muito poucos, sem condição de impor qualquer coisa aos índios. Não seriam loucos de violar códigos indígenas de conduta ou de violar uma índia. As coisas só mudam quando a economia do escambo é substituída pela cultura dos canaviais. As realidades da guerra e da escravização se impuseram. Mas, toda vez que algum fanático pretende absolutizar o estupro, é obrigado a fechar os olhos para três realidades que desmantelam a tese: o lugar da mulher na sociedade indígena, o caminho cultural do concubinato interétnico e, principalmente, a prática da mestiçagem entre iguais [...]. E aqui se deu a maior parte da mistura genética com grupos ameríndios. Mestiçagem de índios e brancos pobres, de par com a mestiçagem de índios e negros, resultando na imensa presença de cafuzos na população brasileira, de que temos milhões de exemplos modernos, do jogador Garrincha (descendente dos índios fulniôs) a músicos como Luiz Gonzaga e Djavan."
A tese do estupro fundador é não só absurda, mas fruto direto da mentalidade torpe que analisei acima. Para essas pessoas, é impossível ter havido encontros entre europeus e indígenas ou europeus e negros sem que houvesse, subrepticiamente, envolvidos processos de relações de poder e de subjugação. As teorias progressistas precisam desconstruir os valores da sociedade atual - inclusive os valores humanos, os sentimentos, os desejos - a fim de justificar a necessidade de uma nova ordem, de um novo ser humano, não mais refém dos valores dos opressores, do patriarcado, da heteronormatividade e de tudo o mais que não tenha aparência abstrata de igualitário e inclusivo.
Imaginem um sujeito como João Ramalho, que ninguém sabe como chegou aqui, em 1510, sozinho, no meio dos tupiniquins, ameaçando o cacique Tibiriçá a fim de estuprar as índias de sua tribo - inclusive sua filha. Imaginem aqueles dois degredados, deixados aqui pela armada de Pedro Álvares Cabral (como consta na carta de Pero Vaz de Caminha), a fim de se integrarem e obter informações sobre a terra achada, invadindo as aldeias, enfrentando os guerreiros e estuprando suas mulheres e filhas. Imaginem que os bandeirantes, descritos por Darcy Ribeiro como "brasilíndios", um "povo mestiço na carne e no espírito", numa terra em que a "mestiçagem jamais foi crime ou pecado", tenham sido, fundamentalmente, fruto de estupros em série. Tudo isso é de um absurdo sem tamanho.
Intelectuais como Lilia Schwarcz, na verdade, odeiam o Brasil. Odeiam o fato de ser um país contraditório, que, mesmo eivado de problemas como o racismo e as desigualdades, bem como por toda sorte de problemas estruturais que se perpetuam por conta da inépcia de nossos políticos, sobrevive. Odeiam que nossa sociedade, do mais pobre ao mais rico, permaneça fundamentalmente conservadora em sua visão de mundo e não dada aos arroubos revolucionários das elites progressistas que, não tendo nada a perder, ignoram a realidade para satisfazer sua fantasia igualitária, que não tem outro propósito senão o de sinalizar virtude para os seus.
Não podemos, enquanto sociedade brasileira, nos render a essa perversão histórica. Os problemas de formação da sociedade brasileira, que são muitos, não devem ser buscados em fantasias desagregadoras, mas na verdade, ainda que eivada de antagonismos. Na verdade, as teorias igualitárias e coletivistas só servem para satisfazer um bando de gente que só finge ter compromisso com o país, mas que, na verdade, usa de seu poder e influência para causar mais e mais tensões sociais que além não resolverem nada - uma vez que são antinaturais -, aumenta o seu privilégio em vez de o diminuir, por isso se sentem confortáveis em propagar absurdos. Precisamos, definitivamente, fazer as pazes com a nossa História, a fim de que esses fanáticos da desordem não tenham mais voz e vez.
Comentários
Postar um comentário