Mais em vez de mas é demais
Há poucas semanas, esta coluna alertou Alexandre de Moraes para os riscos do discurso de improviso. É coisa para tribunos da série A - e os grandes domadores de palavras parecem figurar na lista das espécies em acelerada extinção. O ministro que há pelo menos cinco anos chefia a polícia política da ditadura da toga é um orador medíocre. No país governado por um analfabeto, não há motivos para que os ruins de discurso, na imagem de Nelson Rodrigues, chorem lágrimas de esguicho sentados no meio-fio.
Mas não custa contornar armadilhas e evitar vexames, ponderei. Para tanto, bastaria identificar um juiz auxiliar que trate o idioma com mais respeito e intimidade e encarregá-lo de escrever os textos. Meia dúzia de ensaios garantiria ao orador uma boa leitura. E assim estaria assegurada a salva de palmas com a qual plateias amestradas saúdam até piadas repetidas desde o Descobrimento. É o que deveria ter feito Moraes depois de desistir de consumar a prisão de Jair Bolsonaro já nesta quinta-feira, 24 de julho, alegando que o ex-presidente descumprira a ordem de esperar calado a condenação à prisão programada para o segundo semestre pelo grupo que controla o Supremo.
Sempre afobado, o Primeiro Carcereiro esqueceu o conselho, e fez questão de redigir pessoalmente o palavrório que se estende por sete páginas. A caudalosa sopa de letras exibe em toda a sua desoladora inteireza o estilo do Moraes escritor. A marca de nascença mais visível: ele ama parágrafos imensos feitos de uma frase só. Com o sumiço dos pontos intermediários, desapareceram os pedágios que abrandam a ansiedade dos prolixos patológicos. E multiplicou-se extraordinariamente a multidão de vírgulas.
Algumas vírgulas indispensáveis caíram fora de vez. Outras que faltaram na primeira metade do catatau reapareceram na segunda para, sem pedir licença, intrometer-se entre o sujeito e o predicado.
Um sinalzinho no a que abre a expressão transformou o correto "a favor" num obsceno "à favor". (Também informou que Moraes nunca ouviu a lição do poeta Ferreira Gullar: "A crase não foi feita para humilhar ninguém".) Quando algum tema lhe parece especialmente irritante, um curto trecho em negrito precede PROCISSÕES DE LETRAS MAIUSCÚLAS QUE AVISAM: O AUTOR ESCREVEU AOS BERROS AQUELE TRECHO. Moraes também vê no ponto de exclamação a bengala do idioma, que usa para espancar vigorosamente quem discorda de verdades oficiais.
O superdoutor se valeu de todos esses recursos para transformar duas linhas da quinta página, destacadas pelos espaços em branco, no mais comentado momento do cortejo de vogais e consoantes. Transcrevo sem retoques nem correções:
"Como diversas vezes salientei na Presidência do TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, A JUSTIÇA É CEGA MAIS NÃO É TOLA!!!!!"
O negrito introdutório, 11 palavras com letras maiúsculas e cinco portentosas bengaladas. Cinco!!!!! Estava faltando o quê? Nada, admitiram todos os combatentes da nação polarizada. O problema é que estava sobrando um i na palavrinha entre o CEGA e o NÃO. Em vez de mas, Moraes escrevera mais. Qualquer brasileiro alfabetizado que faça uma coisa dessas deve ser devolvido ao velho Jardim da Infância. Consumado pelo mais poderoso figurão do Supremo, é mais que um pontapé no português. É crime hediondo. A esta altura, o autor deveria estar tentando escapar de temporadas num colégio jesuíta, enquanto amigos e parentes tratavam de arranjar dinheiro para pagar a multa de assustar Sérgio Cabral.
Somada aos socos e pontapés que atingem a gramática e a ortografia ao longo do palavrório, a delinquência custaria ao responsável as mesmas restrições impostas aos envolvidos no golpe de Estado cujo apoio logístico incluiu algodão-doce, estilingue e batom. Os jornalistas da imprensa estatizada fizeram de conta que não ocorreu nenhum assassinato do português. Moraes não perdeu tempo com pecados veniais. Aliás, se alguém ousar incomodá-lo por tão pouco, ele certamente terá o apoio ostensivo da comissão de sabidos que, dois dias antes do crime, incluíra seu nome no grupo de finalistas na disputa do Prêmio Jabuti Acadêmico. O impetuoso centroavante do Timão da Toga chegou à fase decisiva com um livro cujo título resume o conteúdo: Democracia e Redes Sociais - O Desafio de Combater o Populismo Digital Extremista.
Deve ter sido por isso que o escritor derrapou tantas vezes nas sete páginas incorporadas ao latifúndio digital ocupado pelo golpe que não houve. Moraes estava concentrado na busca de truques e mágicas que transformem a oficialização da censura nas redes sociais - patifaria muito apreciada por amantes de ditaduras - numa inovação indispensável à consolidação do regime democrático.
É o Brasil.
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