A manhã em que a liberdade começou a morrer

Há exatos dois anos, na manhã de 27 de maio de 2020, a liberdade começava a morrer no Brasil. Naquele dia, 29 brasileiros patriotas tiveram suas casas invadidas por agentes de Polícia Federal, que obedeciam a uma ordem infame e ilegal do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Inquérito 4871, daí em diante apelidado de Inquérito do Fim do Mundo.

Um dos alvos da PF foi o empresário paulistano Marcos Bellizia, cujos crimes consistiram em organizar movimentos de rua e defender posições conservadoras. O BSM publica hoje o primeiro capítulo do livro de Bellizia, intitulado Diário do Fim do Mundo, em que o empresário conta o aconteceu naquela triste manhã de maio.

Diário do Fim do Mundo, 27 de maio de 2020


 Por Marcos Bellizia


Quando a noite parece mais escura, é sinal de que o dia está chegando. Hoje é quarta-feira e a Polícia Federal bate na porta da minha casa exatamente 49 minutos antes do nascer do Sol.

 As duas viaturas chegam às 5h50 da manhã, e o segurança do prédio acha que pode ser um assalto. Ele está certo por duas razões: primeira, vários condomínios em São Paulo já foram assaltados por bandidos disfarçados de policiais; segunda, aquela operação está completamente fora da lei. Que outro nome podemos dar, senão assalto, à invasão da casa de um homem inocente por motivos ilegais?

Assim que os oito homens fortemente armados descem das viaturas, o segurança chama o zelador do condomínio, Seu Ivan, o zelador liga para o 190, desce pelo elevador, sai de carro até o Shopping Itaim ― que fica ao lado do meu prédio ― e volta acompanhando de uma viatura da Polícia Militar.

 ― Seu Ivan, eles realmente são da Polícia Federal e têm um mandado de busca e apreensão ― confirma o soldado da PM.

 Os oito agentes entram no prédio. A primeira coisa que fazem é tirar o segurança da guarita, para que ele não possa avisar nenhum morador pelo interfone.

 São 6 horas em ponto. Ainda está escuro.

 Fabiana, que trabalha conosco há mais de dez anos, é despertada por batidas estrondosas na porta do apartamento, seguidas de um grito:

 ― Marcos Bellizia!

 Muito assustada, Fabiana abre a porta da área de serviço, achando que poderia ser alguém da família. Um dos agentes coloca o pé na porta, impedindo que Fabiana a feche de novo.

 Não me lembro de ter sonhado nesta noite. Mas, quando vejo Fabiana de pé ao lado da nossa cama, algo que ela nunca fez antes, imagino que possa ser um sonho, talvez um pesadelo.

Não era um sonho. Imediatamente penso: pai.  Pela voz de choro da Fabiana, imagino que ela vai dar a notícia da morte  do meu pai, que tem 87 anos. Salto da cama:

 ― Aconteceu alguma coisa, Fabiana? É meu pai?

 ― Não, Seu Marcos. São uns homens...

 Sinto um grande alívio no coração: não é o pior. Ainda no escuro ― o Sol só nasceria meia hora depois ―, caminho do quarto até a área de serviço. Então vejo oito homens armados, como se estivessem preparados para enfrentar um bandido de altíssima periculosidade.

 ― O que é isso?

 Um dos agentes exibe um papel timbrado:

  ― Temos aqui um mandado de busca e apreensão na sua residência.

 Leio o mandado e vejo que a ordem partiu do ministro Alexandre de Moraes, do STF.

 ― Mas aqui não diz do que estou sendo acusado ― digo aos agentes.

 ― Fake news. É o inquérito das fake news.

Fico em silêncio por um instante. Observo aqueles oito homens ― que deveriam estar prendendo traficantes, ladrões, falsários, pedófilos, assassinos ― mas estão aqui, no apartamento de um empresário que nunca fez mal a ninguém, cujo único crime foi ir às ruas e pedir por um Brasil melhor.

 Certa vez alguém disse que uma forma infalível de identificar as pessoas é olhar para seus sapatos. Foi o que fiz naquele momento ― enquanto me vinham à mente lembranças de nossas manifestações na Avenida Paulista, com o movimento Nas Ruas. Minha maior emoção era cantar o Hino Nacional juntamente com milhares de pessoas, numa onda cívica que envolvia a todos.

Mas se ergues da justiça a clava forte
          Verás que um filho teu não foge à luta...

 Em um átimo de segundo, transporto-me da Avenida Paulista para a área de serviço de meu apartamento no Itaim, onde não estão milhares de manifestantes vestidos de verde-amarelo, mas oito agentes policiais vestidos com os coletes da PF e armados até os dentes. Aponto para os pés dos policiais e digo com calma, mas com autoridade:

 ― Infelizmente, um amigo meu aqui do prédio faleceu de Covid. Vocês podem tirar os coturnos, por favor?

 Os agentes se entreolham. Os coturnos? Mas onde é que esse sujeito aprendeu essa palavra?

Eles não sabem que estão diante de um tenente da reserva do Exército Brasileiro, conhecedor do jargão que denomina aqueles calçados. Para minha surpresa ― e talvez a deles próprios ―, os oito agentes da Polícia Federal cumprem a ordem e tiram os coturnos para prevenir a Covid. Afinal, desde que começou a pandemia, ninguém entra de sapato aqui em casa.

Assim que eles terminaram de tirar os calçados, o dia nasce. São 6h39.

 Por pouco mais de uma hora, 16 coturnos ficam esperando por seus donos na área de serviço, enquanto 16 pés descalços percorrem todos os cômodos do meu apartamento em busca de computadores, celulares, aparelhos eletrônicos ou documentos que possam revelar indícios de um crime que não existe no Código Penal, nem na Constituição Brasileira, nem no Direito Natural que é concedido ao ser humano pelo simples fato de existir: o crime de questionar o poder estabelecido.

Antes que eles comecem a vasculhar o apartamento, dirijo-me a um dos agentes e peço:

 ― Vocês podem fazer tudo sem acordar meus filhos? Eles estão na última semana de provas escolares.

 Aquele que parece ser o chefe diz:

― Se o senhor não reagir, será rápido.

 Reagir? Como? Usar contra oito agentes armados de fuzis a minha espada da formatura do Exército que está  na mesa da minha sala há mais de 30 anos? A única reação possível é lamentar:

 ― Quando nós fazíamos as manifestações na Avenida Paulista, sempre havia um momento em que tocávamos a Canção dos Expedicionários para homenagear as Forças Armadas e a Polícia Federal.

Você sabe de onde eu venho?
Venho do morro, do engenho
Das selvas, dos cafezais
Da boa terra do coco
Da choupana onde um é pouco
Dois é bom, três é demais

Volto-me para um dos agentes e digo:

― Você sabe de onde eu venho? Eu venho de uma família que ama o Brasil. Meu pai sempre me ensinou a respeitar a polícia. Mas, no nosso tempo, a polícia só ia à casa de bandido, não na casa de um pai de família que não fez nada de mal.

Visivelmente constrangido, o que parece ser o líder responde:

― O senhor precisa entender que estamos apenas cumprindo ordens...

Fico em silêncio e acho melhor não dizer que essa frase já foi dita uma vez por um homem chamado Adolf Eichmann. Em vez de falar, conduzo um agente até o banheiro, onde meu celular estava carregando. Depois, vamos até a biblioteca, onde lhe entrego o meu laptop. Na sala de jogos, eu e minha esposa nos sentamos à mesa, enquanto os agentes descalços anotam os dados de nossos equipamentos eletrônicos. Aquele que parece ser o chefe me pergunta se eu lhes passarei as senhas do celular e do laptop.

― Claro que sim. Não tenho nada a esconder.

Neste momento, ao perceber que os agentes vão levar embora toda minha lista de contatos, pergunto ao suposto chefe se poderia anotar dois telefones. Ele concorda.

Em um caderno, anoto os telefones da advogada Flávia Ferronato e do publicitário Sérgio Lima. Percebo que um dos agentes diz ao outro:

 ― Já saiu a notícia no Antagonista?

Eles se divertem com a rapidez da notícia na mídia. De repente, eu me dou conta de que a exposição pública seria brutal: jornais, sites, rádio, televisão.

São 7 horas e 10 minutos da quarta-feira mais difícil da minha vida. Após pouco mais de uma hora vasculhando meu lar, os oito agentes federais calçam seus 16 coturnos, entram nas duas viaturas e vão embora, tendo cumprido a missão que lhes foi dada por Alexandre de Moraes.

Ligo para meu irmão Aleco e conto o que aconteceu.

Ligo para a Dra. Flávia e digo:

― Flávia, eu e o Tomé Abduch precisamos de um bom advogado.

Tomé Abduch é o principal líder do movimento Nas Ruas. Se o STF enviou a polícia à minha casa, é óbvio que também foi à casa do Tomé. Até porque os próprios agentes disseram que havia vários mandados de busca e apreensão sendo cumpridos no país.

Ligo em seguida para o Sérgio Lima, que acabou de pousar no Brasil, voltando de uma viagem aos Estados Unidos. Serginho é um grande amigo que conheci durante as manifestações cívicas dos últimos anos. Ele fica estarrecido com a notícia.

Finalmente, ligo a televisão. Meus filhos e minha esposa se aproximam; todos já sabem o que aconteceu e estão assustados. Gentilmente, Fabiana me traz uma xícara de café na saleta. Ela também tem o olhar perplexo. Meus filhos recebem mensagens dos amigos, perguntando o que aconteceu; mas, para me preservar, não me dizem nada. Nunca me esquecerei desse gesto de amor.

Meu nome está sendo anunciado na mídia. Os apresentadores o pronunciam como se estivessem nomeando um bandido. Agora eu sou famoso ― mas com uma fama que não é justa. De repente, temo que os meus pais, isolados em Indaiatuba por causa da pandemia, vejam o meu nome na TV antes que eu lhes diga o que aconteceu.

São oito da manhã ― um horário em que normalmente eu não ligaria para meus pais. É minha mãe que atende:

― Tudo bem, filho? Aconteceu alguma coisa?

―  Estamos todos bem de saúde, mãe. Não se preocupe. Mas acontece que... a Polícia Federal veio aqui, levou meu celular e meu computador, e agora estão mostrando meu nome nos canais de televisão...

Então, pela primeira vez em muitos anos, eu choro. Não é um choro de medo ou de culpa. São lágrimas de raiva, de revolta, de indignação. Choro porque nada fiz de errado e mesmo assim estou sofrendo um castigo ― e o que é pior, um castigo que se estende à minha família.

Nunca, nunca imaginei que teria de explicar ao meu filho de 17 anos e à minha filha de 15 anos porque a polícia bateu na porta de nossa casa.

 ― Vocês participaram das manifestações pelo Brasil. Vocês estavam lá, ao meu lado, são testemunhas de tudo que eu fiz e tudo que eu disse. É por isso que estou sendo punido, meus filhos. Por desejar um Brasil melhor para vocês.

Nesse momento, minha esposa diz:

― Sabem de uma coisa? Eu me senti assaltada em nome da lei! Como eles podem entrar assim em nossa casa, sem nenhuma acusação, nenhuma prova, nenhuma evidência?

Tomo um banho e vou até o escritório do meu sogro. Ele me empresta um celular, que costuma usar para viagens. Saímos para comprar um chip e almoçamos um sanduíche. Depois disso, vou até o escritório do advogado indicado pela Dra. Flávia. No momento em que estou conversando com ele, recebo uma mensagem de texto da Flávia:

O Tomé não foi alvo da operação.

Como assim? O principal líder do Nas Ruas, o homem que subia em todos os caminhões de som, o homem que aparecia em toda a mídia, o homem que liderava todas as manifestações ― não está entre os investigados pelo STF? Existe algo muito estranho aí.

Imediatamente, os líderes do Nas Ruas começam a criar histórias para justificar o meu indiciamento. Primeiro, dizem que eu participava de um grupo de WhatsApp do Brasil 200. Isso não seria crime, mas também não é verdade. Depois, afirmam que eu tenho contato com o Luciano Hang. Como se o mero fato de conhecer Hang justificasse a presença da PF na minha casa! Como essas primeiras histórias não prosperam, criam a versão de que eu sou “amigo íntimo” do professor Olavo de Carvalho. Mais uma vez: isso é crime? Ter passado uma tarde agradabilíssima com meu filho na casa do Olavo, na Virgínia, constitui alguma contravenção? Outra narrativa tola e fraca.

Para completar, dizem, em uma reunião do conselho do Nas Ruas:

― Que viram o inquérito do STF e sabem que o Marcos Bellizia vai ser preso em 15 dias.

Diante dessa fala, fica evidente para mim que o movimento Nas Ruas me abandonou, deixando um soldado ferido no campo de batalha.

No dia 27 de maio de 2020, o Sol se põe em São Paulo às 17h28. A polícia invadiu minha casa como se eu fosse um bandido; meu nome foi exposto e achincalhado em toda a mídia nacional; meus companheiros de movimento me abandonaram à própria sorte. Mas eu ainda tenho a alegria de voltar para casa. Minha irmã Cris, enviou um delicioso jantar de comida japonesa para nós. E termina assim, com o carinho da minha irmã e o amor da minha família, um dia que começou na escuridão.

Vou para a cama tentar dormir.

 

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