Cachorros na sala de aula
O magnífico labrador estava deitado no tapete a olhar com olhos meigos para o dono que, aos berros, com raiva azeda na voz, dizia: "Cachorro bonito! Bicho mimoso! Fique onde está!" E com um gesto enérgico apontava a porta. E o cão erguia-se de um salto e saía assustado.
Depois, com voz doce, no tom mais amorosamente paternal, ele falava: "Cachorro estúpido! Seu infame detestável! Some daqui, infeliz, que te arrebento a pontapés!", e estalava o dedo. O cão regressava ao tapete felicíssimo e parecia enamorado de seu dono.
Os dois já partiram. E aquela bem-humorada brincadeira é lembrada como um experimento informal, que uma estagiária de 20 anos viria a definir assim: "Cachorros fazem interpretação semântica."
Com efeito, o cão entendia o tom das palavras, não a sua literalidade. E aquela era a evidência de uma interessante técnica de manipulação.
Quando entrei na faculdade, embora não compreendendo bem o fenômeno, vi professores aplicarem a mesma técnica com os patetas, isto é, todos nós, pouco mais do que adolescentes empolgados e sem rudimentos críticos.
Eram os anos 1980. E os professores , com raras exceções, seguiam um protocolo: ocupar o mais do tempo a falar mal de "o sistema", o que implicava exaltar certos cretinos e diabolizar uns quantos que eles rotulavam de "conservadores".
Seria mera omissão? Ou era manipulação consciente? Eles esqueciam que "pensar", em termos acadêmicos, é "explicitar pressupostos".
Ora, quem falasse "democracia", "liberal", "conservador", por exemplo, deveria explicitar que conceito de "democracia", "liberal" ou "conservador" estava utilizando: a sala de aula não é mesa de bar em que cada um diz o que lhe dá na telha e qualquer patacoada é lícita.
Os professores não explicitavam conceito algum! E o alunato ficava como o cachorro do experimento: captava a mensagem que vinha no tom das palavras. Assimilava a repulsa que os professores transpiravam. E acabava detestando os (desconhecidos) "conservadores".
"Mas o que é um conservador?" Ninguém indagava! E se alguém fizesse a pergunta, haveria uma inversão de papéis: alguns professores ficariam com cara de cachorro que corre latindo atrás do carro e não sabe o que fazer quando o motorista resolve parar o veículo...
Aquele bem-humorado experimento e a bagunça conceitual promovida em sala de aula vieram-me à lembrança quando, há pouco, vi um cinquentão (aliás, formado numa universidade federal!) "pagar um mico" ao misturar conservadorismo com nazismo, verdadeiro "samba do articuladinho doido".
Candidamente, ele afivelou na cara uma expressão de ironia desdenhosa para teatralizar uma superioridade intelectual que só existia na fantasia do seu auto-deslumbramento.
Diga-se de passagem que nada há mais desagradável no convívio social do que um imbecil deslumbrado consigo mesmo.
Ora, conservadores repudiam qualquer forma de autoritarismo, o que inclui ideologias totalitárias como o nazismo. E ele não sabia...
Cheguei a pensar em sugerir-lhe um livro de João Pereira Coutinho: "As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários". Só que, nesse caso, quem ia "pagar um mico" era eu, já que é inútil indicar livros a quem não tem coragem para ter dúvidas.
Quem quiser ofertar ao mundo uma versão melhor de si mesmo tem de saber: ser imbecil e ter a atitude canina de não ligar para os conceitos é quase sempre uma questão de escolha pessoal.
Grandes mentalidades buscam com avidez conhecimento enquanto os tolos se comprazem em ter opinião.
Renato Sant'Ana é Advogado e Psicólogo.
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