Inusitado beija-mão

Não recordo qual foi o cartunista que, na década de 1970, fez uma charge em que o exército cubano, comandado por um oficial soviético, entrava num país da África. O comandante ordenava: "Libertem os africanos, e se eles não quiserem libertar-se, atirem neles!".

Lembrei isso ao ler matéria da Folha de S. Paulo sobre a visita de um tal Movimento Delegados pela Democracia (sic!) ao ministro Alexandre de Moraes para entregar-lhe uma homenagem pela "coragem" na defesa das instituições. Ninguém disse explicitamente, mas a homenagem foi ao modo heterodoxo com que o ministro julga e decide.

E, lisonjeado com o beija-mão, ele disse que "instituições brasileiras ainda não compreenderam plenamente os riscos que a democracia brasileira correu no ano de 2022." Para ele, "tanto na polícia quanto no Ministério Público e no Judiciário, tem gente que não entendeu ainda o que nós passamos. E o perigo de isso ressurgir".

Traduzindo a lisonja e a ortodoxia do ministro.

Foi para salvar a democracia que se cancelou o "devido processo legal", que se aboliu o "princípio do juiz natural", que se ignorou a separação dos poderes e que, como advertiu Marco Aurélio Mello (então ministro do STF), se relegou o "direito acusatório" (próprio da democracia) para adotar práticas do despótico "direito inquisitório", disso resultando virar letra morta o art. 5º, LV da Constituição, em que se prevê, para todo e qualquer acusado, direito ao "contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".

Mas isso não seria um ataque direto aos fundamentos da democracia? Não é a lógica insana de um médico inimaginável que, para combater uma doença, ministra uma injeção letal ao paciente?

Os signatários da homenagem ainda ouviram palavras que, noutro contexto, poderiam fazer sentido: "Polícia, na ditadura, não é polícia. É braço armado do ditador. Ministério Público, Judiciário, na ditadura, não têm independência nenhuma, autonomia nenhuma. Também são os braços jurídicos [da ditadura]", falou o ministro.

Verdade. Assim era na infeliz República Dominicana sob a tirania de Trujillo (direita). É assim na Venezuela como em todos os países socialistas (esquerda). E assim se está desenhando no Brasil.

Renato Sant'Ana, Advogado e Psicólogo.


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